Page 124 - Da Terra
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PAI NOSSO                                                                                                                                    ISSO NÃO É PUXADO PARA AQUI


                                                 Quando  era  criança  entre nha-me  apanhando                                                                             Bem aparecida seja como o sol de Inverno. Quer, então, o meu testemunho? Digo-lhe que comecei cedo a bailar nos braços dos

                                                 sombras.  Imaginava-as  na  concha  das  mãos  como                                                                       pares, descalço e quase nu. Ainda tenho esse jeito. Quer ver? Quando fui para sacar o revólver, falhou-me o coldre. Há sempre
                                                 insectos capturados em pleno voo, antes de abrir os                                                                       qualquer coisa a interromper-me o disparo. Não sei se azar, se des no, mas há sempre qualquer coisa que não controlo, que não

                                                 dedos  soltando-as  como  a  borboletas.  Preocupada                                                                      está nas minhas forças dominar, qualquer coisa que resolve por mim aquilo que, à par da, apenas eu poderia resolver. Sucede
                                                 comigo,  julgando-me  à  mercê  de  uma  imaginação                                                                       quando vou à caça, quando mergulho nas águas gélidas do pensamento, quando, no terreiro domés co dos meus dias, vou
                                                 demasiado fér l, minha avó fez-me decorar orações.                                                                        deixando peças de roupa pelo caminho. Que poderei eu fazer contra esta sina? Não possuo a perspicácia dos pistoleiros, nem

                                                 Então, em vez de apanhar sombras, eu dizia:                                                                               a rapidez dos samurais, não fui dotado de olhares assassinos, in mido os meus interlocutores apenas no despeito das horas vagas.
                                                                                                                                                                           Faltam-me os treinos quando bato as cartas na mesa. Baralho o monte sem hesitação, mas só dou biscas aos adversários. Trunfos

                                                     O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS DÊ HOJE…                                                                                  na manga não trago, pois visto sempre mangas curtas. Reduzo-me à insignificância dos factos: Deus não quer nada comigo, e nem
                                                                                                                                                                           por isso posso queixar-me. Também nunca quis nada com ele. Mas às vezes dá-me uma certa nostalgia dos confessionários, da
                                                                                                                                                                           catequese, desses altares onde o Senhor acolhe orações paté cas, às vezes dá-me uma certa nostalgia dos terços, das ba nas, dos
                                                 Ao ouvir-me dizer tais coisas, meu pai repreendeu-me.
                                                                                                                                                                           crucifixos. Fico deitado nas ilhas a mirar transeuntes. Fixo-me nos trejeitos das moças, olho os acompanhantes de bico calado.
                                                 O  pão  ganha-se  com  trabalho,  ninguém  o  dá.  E  eu
                                                                                                                                                                           Adoro mãos dadas, gente que passeia abraçada, curvas tão român cas quão acé cas. E juro que não lhes invejo os dias. Sei lá dos
                                                 fiquei sem saber o que pensar, e em não sabendo o que
                                                                                                                                                                           seus dias. Não posso saber, estou aqui fechado. Sei apenas que fico para ali a pensar que devo ser um enteado do Senhor, uma vista
                                                 pensar  fiquei  sem  saber  o  que  fazer.  Ainda  hoje
                                                                                                                                                                           curta, um queixume com mais fome do que barriga. Eu foi um milagre, não  ve avó nem mãe. A professora era ruim para bater que
                                                 vasculho o forno das ideias à espera de uma resposta
                                                                                                                                                                           as mãos até ficavam negras. Eu era a coisa que mais gostava de fazer era andar na charrua atrás das vacas. Ai, filha do coração, Deus
                                                 que  cresça  como  um  pão.  Não  sei,  porém,  se  me
                                                                                                                                                                           te dê sorte com elas. A verdade é que já não me resta muito tempo. Tenho sido malsão nas opções que fiz. Ninguém me manda ir
                                                 alimento mais da espera ou das respostas amassadas
                                                                                                                                                                           comprar peixe sem estudar o mar, entregar-me nas mãos de quem apregoa na lota, ser mais filho que pai, apertar o sinto apenas
                                                 pelas mãos obedientes a um pensamento que duvida.
                                                                                                                                                                           à medida do umbigo. Ninguém me manda lampejar talentos que não tenho, talentos que são dom do nome ou, como li algures, do
                                                 Disponho as palavras tendidas na página em branco e
                                                                                                                                                                           berço e do lei nho enfarpelado durante a pequenez. Logo eu, que me contento com tão pouco. Vivo bem com o calor zoom zip das
                                                 quedo  a  olhar  para  elas  como,  quando  era  criança,
                                                                                                                                                                           escapadelas, umas cervejinhas frescas à hora do descanso, lápis e papel, o que houver na mesa. Não sou nada exigente com os
                                                 quedava  a  olhar  a  massa  crescendo  lentamente  até
                                                                                                                                                                           vinhos, nunca tanto quanto sou com os beijos. Garanto também que até ter perdido as duas vistas num duelo zarolho, nunca dei
                                                 ficar pronta para cozer.
                                                                                                                                                                           conta de quanto podia valer um espelho reflector. Como sabeis, é pela retaguarda que um  po nunca descansa. É por trás que as

                                                                                                                                                                           caladas atacam. É por trás que, desprevenidamente, mais as balas nos a ngem e atravessam o cachaço. Depois nada a fazer. Talvez,
                                                                                                                                                                           como vou apregoando aos mosquitos que ainda me escutam, dar connosco a mirar trancas enquanto desenrolamos as tranças da
                                                                                                                                                                           memória. Uma coisa é certa: não me entrego com facilidade aos chicotes. Se me quiserem o sangue, que afiem os dentes.


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